sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009


Análise

Se você substituir a palavra "mentira" por "artifício", na fala do F. Pessoa, talvez a possa entender melhor. Picasso disse: "A arte é a mentira que faz com que cheguemos mais perto da verdade." Ele quer dizer: o artifício (já que um quadro - uma pintura -, por exemplo, é uma representação do real e não o real em si). Entendo a palavra "mentira" nos dois contextos (como "artifício" ou "ilusão"), mas, em ambos os casos, a acho meio forte, porque, se tudo é "mentira" nesta nossa vida "aqui de baixo" (o mundo "tri-dimensional"), então, logicamente, tudo é verdade também. Por exemplo: o porquê de um quadro não é, na verdade, representar, "registrar" ou "ilustrar" a realidade externa, e sim fazer um trabalho interno (o próprio FAZER, do artista, o trabalha internamente), e "expor" a realidade interna, a realidade da alma ou do espírito (sem conotações religiosas, aqui, para estas duas palavras); e, portanto, um trabalho de arte, embora seja um "artifício" (algo "cultural" e não "natural"), é, em si mesmo, uma verdade e não uma "mentira" ("verdade por saber que é "mentira" (artifício), e assim não mentir"). O que o Fernando Pessoa quiz dizer, a meu ver, relaciona-secom - e critica - o fato de algumas pessoas ficarem proclamando a "verdade" - ou a "verdade absoluta" -, como, aliás, acontece muito no esoterismo: autores afirmam coisas como se soubessem muito bem sobre elas, e como se estivessem tratando da "verdade acima de todas", dizendo que a arte, por exemplo, "não tem muita transcendência" (o que não é, de forma alguma, verdade). Eu acho que o Fernando Pessoa dá um "cheque" nessas pessoas que ficam tentando fazer "mistério" e criando expectativas, sem que, no entanto, consigam expressar realmente o que querem ou pensam ou percebem (se é que é exprimível o que elas tentam expressar). Há um ditado (se não me engano, do Zen): "O que não pode ser falado, deve ser calado". Concordo com F. Pessoa: acho que o poeta, por exemplo (ou o artista em geral), sem ficar ditando cátedra, sem ficar sugerindo "eu detenho a verdade" (para mim, dizer isto é uma auto-afirmação vazia, inexpressiva, pretensiosa), fala melhor da realidade interna do que outros, "esotéricos", que falam mas não esclarecem muito as coisas... (vêem um excesso de mistério no "mundo transcendental"). O que acho meio estranho também, nos textos esotéricos, é a falta de poesia. Esses textos, em geral, seguem - como os da psicanálise - uma linha mais "filosófica" de linguagem. E a gente fica sentindo falta de alguma coisa... falta de POESIA, de VIDA. Lewis Carrol expressou isto muito bem, e de forma extremamente simples, no seu "Alice...". Ele (Alice) diz: "- E para quê um livro sem gravuras e diálogos?" Quer dizer: para quê (serve) uma obra que não tenha poesia, que não seja uma coisa viva em si mesma? Eu, pessoalmente, acho que a poesia (de um Fernando Pessoa, por exemplo - que, além do mais, é cheia de sabedoria; e se não fosse não teria sentido, já que não vejo sentido na "poesia pela poesia": mero "derramamento de emoções") fala muito mais a verdade do que qualquer texto "esotérico" que fala mas não diz... Para mim, a questão é que, para se entender a arte (que não se preocupa em "explicar" - ainda bem), deve-se trilhar um certo caminho. Este caminho é tão esotérico (difícil, oculto, deve ser "experimentado" individualmente, e não há como ser "ensinado") quanto o da alquimia. Mas o artista simplesmente faz e expõe, ou publica (o que considero a forma mais nobre de se dizer alguma coisa), sem ficar tentando "doutrinar" ninguém. O poeta não fica falando, por exemplo: "Meu filho, por este meio tu alcançarás a glória do mundo, e toda a obscuridade se afugentará de ti", como diz o próprio Hermes na "Tábua de Esmeralda"; e muitos outros alquimistas, senão todos, fazem o mesmo. Os alquimistas, quando escrevem, parece que descobriram a "verdade última, absoluta", mas os seus textos são cheios de promessas, cheios de "meu filho, tu alcançarás a glória...". Por quê? (Quem tem certeza de uma coisa não fica tentando convencer ninguém de nada. Em geral, quem tenta convencer está "jogando verde para colher maduro").
Os esotéricos prometem "glória", sugerem, parecem querer "ensinar", mas, na verdade, usam uma linguagem do suspense, do "mistério", que deixa o leitor sempre numa expectativa inútil. (Para quê?). Acho isso questionável. Fernando Pessoa, ao contrário, fala a verdade (e com grande poesia) sem necessidade de tentar "convencer" ou de "prometer" nada:
"NÃO CONSENTEM os deuses mais que a vida. Tudo pois refusemos, que nos alce A irrespiráveis píncaros, Perenes sem ter flores. Só de aceitar tenhamos a ciência, E, enquanto bate o sangue em nossas fontes, Nem se engelha conosco O mesmo amor, duremos, Como vidros, às luzes transparentes, E deixando escorrer a chuva triste, Só mornos ao sol quente, E refletindo um pouco." (Fernando Pessoa)

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