sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009


Os silêncios da criação
A linha cósmica criadora de uma poesia que revive nas novas gerações.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
Bernardo SoaresA admirável presença do silêncio é o mais completo e complexo instante de Criação que o Ser Humano pode atingir.
E o que é a admirável presença do silêncio?
Um espelho? Não. É o pensamento e o sonho dinamizando uma Existência particularíssima - talvez, uma conjugaçao astrológica definidora de um Algo humano; de um outro ser/dever em exposição que não a habitual...
A linguagem do silêncio é uma língua-eixo: a partir do pensamento, lúdico ou não (mas quase sempre lúdico porque em Criação), a personalidade multiplica-se transformando e transtornando positivamente um todo (o Eu e o que lhe é exterior).
É a Criação do intelecto em plena Liberdade!
Como naquele dizer aristotélico, o homem cria os deuses à sua imagem e, digo eu, os manipula sempre levianamente.
Quando nos deparamos com o Tempo e o Espaço - que só o são para a humaníssima realidade! - no existir de um Algo chamado Fernando Pessoa, somos assaltados por uma língua-eixo que nos transporta para um jogo cujo espectro "fornece um retrato de nós mesmos onde até mesmo o nosso meio é representado como função em potencial do nosso ser. Através desse instrumento, podemos reconhecer como somos estruturados, inclusive partes importantes do nosso meio, o que poderá nos levar gradativamente a uma maior liberdade" (1); há, pois, uma concepção de Vida alimentada no (re)conhecimento da simbologia ocultista e da astrologia... Fernando Pessoa, ao repudiar o espelho físico - o espelho vulgar - adquiríu uma dignidade diferente ante o seu Eu instruindo em Si-mesmo uma Existência, também ela diferente porque exterior ao compacto anti-filosófico do comum ir-vivendo.
E como pode o poeta fingir diante de um espelho?
Se o companheiro e poeta Mário de Sá-Carneiro víu num espelho a Verdade da hora fatalmente física, ele - Fernando Pessoa, já muito antes disso havia determinado que a sua vivência seria reflexo de "uma maior liberdade", tendo em conta a admirável presença do silêncio balizado por um Tempo e um Espaço tão mistificados quanto Ele-mesmo.
Sabemos que "Nossa consciência normalmente não se encontra no centro, mas na periferia. Experimentamos a nós mesmos da forma mais drástica e intensa através do contato com o mundo externo" (2), permitindo isto, ao intelectual e ao poeta, mas particularmente a este, uma viagem surpreendente no Cosmo: porque no Cosmo estão as referências que nos atravessam o pensamento e o sonho -, daí à ampla liberdade de Criação é um descer de estação em estação provando/provocando cada nova personalidade admitida em nós, como acontece(u) no existir do Algo pessoano.
Na heteronímica de Fernando Pessoa, "Entre a linguagem simples de um Alberto Caeiro e a metafísica de Ricardo Reis até à linguagem complexa de Álvaro de Campos, os mundos se cruzam" - como diz Ione Menegolla (3), e "Caeiro, Reis e Campos sonham e assim vêem as formas invisíveis (...) Ricardo Reis e Álvaro de Campos remetem a Caeiro. Um próximo questionamento carrega as bases de um anterior. Cada problema remete a outro, e assim sucessivamente. Tudo deve servir como uma nova aprendizagem". Eis a linguagem-eixo, aquela que renega o espelho fácil de Nós e da Vida para nos interpretar face ao Cosmo e aos Outros, e deixando continuamente uma margem para outras especulações, como o fez Fernando Pessoa ao se interpretar como um Algo total no Cosmo, e entre Nós...para nos presentear com os reflexos filosóficos e naturais d'Ele-mesmo - isto é: o pensamento e o sonho são, por esta mostra, o espelho-Verdade de Nós enquanto linhas de Criação.
Esta questão não esconde a face messiânica e intimamente aventureira do Algo pessoano, bastando recordar aqui que, para ele, "...o português seria o instrumento mais do que possível para serenar a Besta diversa colocando n'...a proibida azul distância, o Tempo e o Verbo do cristianismo" (4). Ele era/é o interprete fiel da Língua portuguesa e não pode(ria), assim, se desviar do efeito histórico e do sonho lusíada medieval, provocando com isso uma nova concepção de História e de presença humana diante da sua geração e das vindouras. Porque a Poesia é uma arte singular e plural - para homenagear um título feliz do pessoano João Alves das Neves (5) - da mesma maneira que o Poeta o era, ou é!
A sua Obra nos afeta admiravelmente, como se ele fosse uma linha telúrica-cósmica criadora de uma Poesia que (re)vive nas novas gerações sob a simbologia do silêncio transformador.
Ele - o poeta da Lisboa romântica, não nos manipula levianamente: deixou-nos, isso sim, um endereço cósmico para o diálogo eloquente e (i)mortal da Obra vária; não queria que Nós fossemos guardadores de rebanhos estupidamente cilindrados por um cotidiano vulgaríssimo... O contrário é isso mesmo: viver o silêncio entre orgias sá-carneirianas interiores dentro do Tempo e do Espaço que somos, visivelmente!
(1) e (2) - HUBER. Bruno & Louise in: As Casas Astrológicas/Uma Abordagem Psicológica Do Homem e Do seu Mundo, Trad. Karim Daar; Totalidade Edit/SP-1989.
(3) - MENEGOLLA, Ione M., in A Metamorfose Em Fernando Pessoa, Edição. Caravela/RS-1985.
(4) - BARCELLOS, João in Aquel'Outro Fernando Pessoa, palestra, SP-1990.
(5) - NEVES, João Alves das, in Fernando Pessoa/O Poeta Singular e Plural, Edit. Expressão, SP-1985.

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